domingo, 2 de outubro de 2011

ISAAC ASIMOV - A MÁQUINA QUE GANHOU A GUERRA

As comemorações ainda deviam se prolongar bastante, e mesmo nas silenciosas
profundezas das câmaras subterrâneas do Multivac havia algo de diferente no ar.
Em primeiro lugar, havia o simples fato do silêncio e do isolamento. Pela primeira
vez nos últimos dez anos, não havia técnicos correndo pelos passadiços do imenso
computador, as luzes não estavam piscando nos seus costumeiros padrões
erráticos, o fluxo de entrada e saída de informações tinha sido interrompido.
Não por muito tempo, é claro, porque a implantação da paz iria impor suas próprias
exigências. Mas naquele instante, por um só dia, talvez por uma semana, mesmo o
Multivac tinha o direito de comemorar a grande data e repousar.
Lamar Swift tirou o quepe militar que usava e fitou o longo corredor central do
computador gigante, que se estendia vazio à sua frente. Estava sentado numa das
cadeiras giratórias usadas pelos técnicos, e seu uniforme, dentro do qual ele nunca
chegara a se sentir confortável, tinha uma aparência gasta e amarrotada.
- Acho que vou sentir falta disso, por mais horrível que possa parecer - disse ele. - É
difícil lembrar de um tempo em que não estivéssemos em guerra com Deneb; agora
parece antinatural saber que estamos em paz e podemos olhar sem medo para as
estrelas.
Os dois homens da Diretoria Executiva da Federação Solar eram ambos mais jovens
do que Swift. Nenhum deles tinha tantos cabelos brancos. Nenhum tinha uma
expressão tão cansada.
John Henderson, lábios finos, mal conseguindo controlar o alívio que sentia em meio
à sensação de vitória, exclamou:
- Foram destruídos! Totalmente destruídos! Fico repetindo isso o tempo todo e ainda
não consigo acreditar. Passamos todos estes anos falando da ameaça que pairava
sobre nós, sobre os demais planetas, sobre cada ser humano, e era verdade, cada
palavra do que dizíamos era verdade. Agora estamos vivos... os denebianos é que
foram dizimados, destruídos! Nunca mais nos atacarão de novo.
- Graças ao Multivac - disse Swift, lançando um olhar de esguelha ao imperturbável
Jablonsky, que durante toda a guerra tinha sido o Intérprete-Chefe do "oráculo" dos
cientistas. - Certo, Max?
Jablonsky encolheu os ombros. Maquinalmente procurou um cigarro no bolso, mas
acabou mudando de idéia. Ele era o único entre os milhares de técnicos que
trabalhavam nos túneis interiores do Multivac que tinha autorização para fumar; mas
nos estágios finais da guerra ele tinha feito um esforço heróico para abrir mão desse
privilégio.
- Bom - disse ele, pelo menos é o que eles dizem. - Seu enorme polegar apontou
para o alto, por sobre o ombro direito.
- Ciumento, Max?
- Porque estão brindando ao Multivac? Porque o Multivac foi o grande herói da
humanidade nesta guerra? - O rosto áspero de Jablonsky assumiu um ar
desdenhoso.
- O que tenho eu a ver com isso? Deixe que o Multivac seja a máquina que ganhou
a guerra, se isso agrada a eles.
Henderson olhou de esguelha para os dois homens. Naquele breve interlúdio em
que os três tinham instintivamente se abrigado no único lugar tranqüilo de uma
metrópole entregue ao delírio da comemoração; naquele compasso de espera entre
os perigos da guerra e as dificuldades da paz; naquele instante em que todos eles
podiam respirar aliviados, ele estava consciente apenas do fardo da culpa que
carregava.
De súbito, foi como se aquele peso se tornasse grande demais para ser levado por
ele sozinho. Tinha que ser retirado de seus ombros. Juntamente com a guerra.
Agora!
- O Multivac não tem nada a ver com esta vitória - disse ele. - É apenas uma
máquina.
- Uma grande máquina - disse Swift.
- Tudo bem, uma grande máquina. Não é melhor do que os dados com que é
alimentada. - Parou por um momento, nervoso diante do que iria dizer em seguida.
Jablonsky o fitou em silêncio, com os dedos procurando novamente um cigarro e
novamente mudando de idéia. Falou, por fim:
- Bom, você é quem sabe. Você lhe fornecia os dados. Ou está querendo receber os
elogios por tudo?
- Nada de elogios - disse Henderson, zangado. - O que sabem vocês dos dados
utilizados pelo Multivac, pré-processados por centenas de computadores
subsidiários aqui na Terra, na Lua, em Marte, até mesmo em Titã? Com os dados de
Titã sempre chegando atrasados e nos deixando sempre naquela expectativa de
que quando chegassem iriam introduzir alguma variável inesperada...
- É, era uma loucura - disse Swift, com simpatia. Henderson abanou a cabeça
negativamente.
- Não se trata só disso. Reconheço que quando eu substituí Lepont como
Programador-Chefe, há oito anos, eu estava nervoso. Mas o clima daquela época
era diferente.
A guerra ainda estava sendo travada num front remoto, era uma espécie de
aventura sem nenhum perigo real. Ainda não tínhamos atingido o ponto em que foi
necessário utilizar naves tripuladas, ou quando armas interestelares podiam
deformar o espaço e engolir um planeta inteiro, se manipuladas corretamente. Mas
aí, quando as verdadeiras dificuldades tiveram início... - Sua voz permitiu-se enfim
exprimir toda a raiva que sentia. - Mas vocês não sabem nada sobre isso!
- Muito bem - disse Swift. - Que tal se você nos contasse? A guerra acabou.
Ganhamos.
- É mesmo - disse Henderson, assentindo com um gesto de cabeça. Tinha que ter
aquilo em mente. Tinham ganhado a guerra. Tinha dado tudo certo, afinal. - Bem...
acontece que a partir de uma certa época os dados já não faziam mais sentido.
- Não faziam sentido? Está dizendo isso literalmente? - perguntou Jablonsky.
- Literalmente. O que queriam vocês? O problema com vocês dois é que nunca
tomaram parte, para valer, nos acontecimentos. Você, Max, nunca saía do Multivac;
e quanto ao senhor, diretor, nunca deixava a Mansão, exceto em missões oficiais
onde via apenas o que os outros queriam lhe mostrar.
- Eu tinha consciência disso - disse Swift, como você mesmo, aliás, deve ter
percebido.
- Muito bem - prosseguiu Henderson. - Sabem até que ponto nossos dados
referentes a capacidade produtiva, potencial de recursos, pessoal qualificado... tudo
que era de importância vital para a guerra, na verdade... sabem até que ponto esses
dados se tornaram inúteis, não-confiáveis, durante a segunda metade da guerra?
Líderes civis e militares tentavam melhorar a própria imagem, omitindo os fatos
negativos e exagerando os positivos. Não importa o que os computadores fazem: os
homens que os programam e que interpretam seus resultados estavam pensando
em salvar a própria pele e em apresentar resultados melhores do que os de seus
concorrentes. Era impossível modificar isso. Eu tentei e falhei.
- Claro - disse Swift, tentando consolá-lo. - Não é de admirar que não tenha
conseguido.
Desta vez Jablonsky tomou a decisão de acender o cigarro.
- E no entanto - falou, isso não impediu que você continuasse supervisionando a
alimentação de dados para o Multivac. Você nunca nos disse nada sobre dados nãoconfiáveis.
- E como poderia dizer? Se eu dissesse, alguém iria acreditar em mim? - retorquiu
Henderson com irritação. - Todo o nosso esforço de guerra tinha que passar através
do Multivac. Era a única arma que poderia desequilibrar a guerra em nosso favor, já
que os denebianos não tinham nada semelhante. Nos momentos de maior perigo, o
que mantinha alto o nosso moral era a certeza de que o Multivac sempre conseguiria
prever e anular qualquer movimento denebiano e ao mesmo tempo evitar que eles
previssem e anulassem os nossos movimentos. Pelo Espaço! Depois que o nosso
sistema de Hiperespionagem foi reduzido a poeira cósmica, ficamos totalmente sem
dados sobre Deneb para fornecer ao Multivac... e nunca nos atrevemos a anunciar
isso em público.
- Isso é verdade - concordou Swift.
- Muito bem - prosseguiu Henderson. - Se eu dissesse a vocês que aqueles dados
não mereciam confiança, que outra coisa vocês poderiam fazer a não ser recusar-se
a acreditar em mim e me substituir por outro? Eu não podia correr esse risco.
- E o que fez, então? - perguntou Jablonsky.
- Bom... já que ganhamos a guerra, acho que agora posso contar tudo. Eu alterava
os dados.
- Como? - perguntou Swift.
- Intuição, talvez. Ficava mexendo neles até que me parecessem corretos. No
começo eu mal me atrevia. Mudava um detalhe aqui, outro acolá, apenas para
corrigir o que eram impossibilidades óbvias. Quando o céu não desabou sobre
minha cabeça, fui ficando mais corajoso. Já agora no final eu nem tomava muitas
precauções. Apenas me sentava e preparava os dados que me eram solicitados.
Consegui inclusive que o Anexo do Multivac preparasse dados para mim, de acordo
com um programa que criei especialmente para isso.
- Cifras aleatórias? - perguntou Jablonsky.
- Não propriamente. Eu introduzi um grande número de parâmetros indispensáveis.
Jablonsky deu um sorriso um tanto inesperado. Os olhos negros brilhavam por sob
as pesadas pálpebras.
- Por três vezes me chegaram relatórios falando de utilização não-autorizada do
Anexo - disse ele. - Sempre arquivei as denúncias. Se fosse algo importante, John,
eu teria seguido até lá e desmascararia o que estava fazendo. Mas é claro que
àquela altura o Multivac não estava mais realizando nada de importante, por isso
deixei-o prosseguir.
- O que quer dizer com isso, "nada de importante"? - perguntou Henderson,
desconfiado.
- A verdade. Se eu tivesse lhe contado tudo então, teria evitado muitas dores de
cabeça para você. Mas se você tivesse aberto o jogo comigo também teria evitado
as minhas. Quem lhe disse que o Multivac estava funcionando direito,
independentemente dos dados que recebia?
- Não estava? - perguntou Swift.
- Na verdade, não. Não merecia confiança. Veja bem: onde estavam meus técnicos
durante os últimos anos da guerra? Vou lhe dizer: estavam operando computadores
em mais de mil instalações especiais diferentes. Todos lá! Eu tive que tocar meu
trabalho com a ajuda de garotos inexperientes e de veteranos com formação
defasada.
Além do mais, acha que eu podia ter confiança nos componentes de estado sólido
que recebia da Criogenia nos últimos anos? Em matéria de pessoal qualificado, a
Criogenia estava tão despreparada quanto o meu setor. Para mim, era indiferente se
os dados colocados no Multivac eram confiáveis ou não. Os resultados não seriam,
em qualquer hipótese. Disso eu tinha certeza.
- E o que você fez? - perguntou Henderson.
- O mesmo que você: introduzi o fator subjetivo. Modifiquei os resultados de acordo
com a minha intuição... e foi assim que a máquina ganhou a guerra.
Swift se recostou para trás na cadeira e esticou as pernas para a frente,
exclamando:
- Mas quantas revelações! Quer dizer então que os relatórios que chegavam às
minhas mãos, o material em que eu me baseava para tomar decisões... eram uma
interpretação feita por um só indivíduo, a partir de dados inventados por um outro
indivíduo. Era isso?
- Tudo indica que era - disse Jablonsky.
- Então eu estava certo em não dar muita importância a esses relatórios.
- Não dar? - A despeito da confissão que tinha acabado de fazer, Jablonsky ainda
conseguiu compor um ar de orgulho profissional ferido.
- Infelizmente. O Multivac parecia estar dizendo: ataque aqui, não ali; faça isto, não
aquilo; espere, não aja. Mas eu nunca podia ter certeza de que o Multivac dizia de
fato o que parecia estar dizendo; ou melhor, se ele sabia o que estava dizendo. Eu
não podia estar seguro.
- Mas os relatórios finais eram sempre muito claros, senhor - disse Jablonsky.
- Talvez... para quem não tinha que tomar a decisão final. Eu tinha. Esse tipo de
responsabilidade acarreta um peso horrível, e nem mesmo o Multivac era suficiente
para remover esse peso. Mas o detalhe importante é: eu estava certo em duvidar, o
que me dá agora um tremendo alívio.
Envolvido por aquela atmosfera cúmplice, cheia de confissões, Jablonsky
abandonou as formalidades:
- Mas então, o que foi que você fez, Lamar? Porque o fato é que você tomava as
decisões. De que modo?
- Bem, acho que preciso ir andando, mas... é, acho que posso dizer-lhes. Por que
não, afinal? O fato, Max, é que lancei mão de um computador, mas um muito mais
antigo do que o Multivac. Muito mais antigo, mesmo.
Ele enfiou a mão no bolso e extraiu dali um maço de cigarros juntamente com um
punhado de pequenas moedas - dinheiro antigo, da época anterior ao racionamento
de metal que transformara o dinheiro num simples serviço de crédito, ligado a um
sistema computadorizado.
Swift deu um sorriso encabulado.
- Gosto de andar com isto... faz com que o dinheiro continue parecendo algo
substancial. Um homem da minha idade tem dificuldade em abandonar os hábitos da
juventude. Com um cigarro no canto da boca, ele foi recolocando as moedas no
bolso, de uma em uma. Não guardou a última: segurou-a na ponta dos dedos e ficou
fitando-a com olhar absorto.
- O Multivac não é o primeiro computador, camaradas, nem é o mais conhecido, nem
o que pode retirar mais eficientemente o peso da responsabilidade de sobre os
ombros de um executivo. A guerra ganha por uma máquina, John, e por um sistema
de computação na realidade muito simples, um que eu usei cada vez que tinha que
tomar uma decisão particularmente difícil.
Com um sorriso vagamente nostálgico, ele atirou a moeda para o alto com a unha do
polegar; ela rebrilhou no ar enquanto girava e voltou a cair sobre a palma da mão de
Swift. Seus dedos se fecharam sobre ela e num gesto hábil ele a pousou sobre as
costas da mão esquerda; ainda mantendo a mão direita na mesma posição,
ocultando a moeda, ele perguntou:
- E então, cavalheiros... cara ou coroa?

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