terça-feira, 10 de maio de 2011

Conto: Os Gatos de Ulthar (H. P. Lovecraft)






Dizem que em Ulthar, que se situa além do rio Skai, homem algum pode matar um gato. E posso de fato crer nisso ao colocar meus olhos sobre aquele que se senta ronronando em frente à lareira. Pois o gato é enigmático e próximo a coisas estranhas que os homens não conseguem ver. Ele é a alma do antigo Egito e portador de contos de cidades esquecidas em Meroë e Ophir. É parente dos senhores da selva e herdeiro dos segredos da África sinistra e anciã. A Esfinge é sua prima e ele fala a língua desta; porém, é mais velho que a Esfinge e lembra-se daquilo que ela já esqueceu.
Em Ulthar, antes que os cidadãos viessem a proibir a matança de gatos, moravam em uma cabana um velho e sua esposa, que se deleitavam em capturar e matar os gatos de seus vizinhos. O porquê de fazerem isso eu não sei, exceto que muitos odeiam a voz do gato à noite e vêem com maus olhos o fato de os gatos correrem livremente de maneira furtiva por pátios e jardins no crepúsculo. Mas qualquer que fosse a razão, esse velho e sua mulher tinham prazer em capturar e matar cada gato que chegasse perto de seu casebre; e por alguns sons ouvidos depois do anoitecer, muitos aldeões julgavam que o modo do assassínio era extremamente peculiar. Contudo, os aldeões não discutiam tais coisas com o velho e sua esposa, tanto por causa da expressão habitual nos rostos secos dos dois como pelo fato de que sua cabana era tão pequena e ficava oculta tão sombriamente sob carvalhos que se espalhavam nos fundos de um pátio mal cuidado. Na verdade, ainda que os donos dos gatos muito odiassem essa gente estranha, temiam-na ainda mais; e em vez de recriminá-los como assassinos brutais, simplesmente cuidavam para que nenhuma mascote ou rateiro fosse em direção ao casebre afastado sob as árvores escuras. Quando devido a algum descuido inevitável dava-se pela falta de um gato e ouviam-se sons após o anoitecer, aquele que o perdera lamentava impotente ou consolava-se agradecendo ao Destino por não ter sido um de seus filhos a desaparecer de tal forma. Pois as pessoas de Ulthar eram simples e não sabiam de onde todos os gatos vieram originalmente.
Um dia uma caravana de estranhos peregrinos do Sul adentrou as estreitas ruas de pedras arredondadas de Ulthar. Peregrinos escuros eram eles e diferentes dos outros errantes que passavam pela aldeia duas vezes por ano. Na praça do mercado liam a sorte em troca de prata e compravam contas vistosas dos mercadores. Qual era a terra desses peregrinos ninguém sabia dizer, mas via-se que eram dados a preces estranhas e que haviam pintado nas laterais de suas carroças figuras estranhas com corpos humanos e cabeças de gatos, falcões, carneiros e leões. E o líder da caravana usava na cabeça um ornamento com dois chifres e um disco curioso entre eles.
Havia nessa caravana peculiar um menino sem pai nem mãe, que possuía apenas um gatinho preto a quem dar afeto. A peste não havia sido bondosa para com ele, mas ainda assim havia lhe deixado essa coisinha peluda para mitigar seu sofrimento; e quando se é muito jovem, pode-se encontrar grande alívio nas estripulias animadas de um gatinho preto. De modo que o menino a quem o povo escuro chamava de Menes sorria mais freqüentemente do que chorava ao se sentar para brincar com seu gatinho gracioso nos degraus de uma carroça pintada de maneira singular.
Na terceira manhã da estada dos peregrinos em Ulthar, Menes não conseguiu encontrar seu gatinho. E enquanto soluçava em voz alta na praça do mercado, certos aldeões lhe contaram sobre o velho e sua esposa e os sons ouvidos à noite. E ao ouvir essas coisas seus soluços deram lugar à meditação e, por fim, à prece. Estendeu seus braços em direção ao sol e orou em uma língua que aldeão algum podia compreender, embora os aldeões em verdade não tenham tentado com muito afinco compreendê-la, uma vez que suas atenções estavam voltadas principalmente para o céu e para as formas bizarras que as nuvens estavam assumindo. Era algo bastante peculiar, mas enquanto o menino proferia sua súplica, no céu pareciam se formar as figuras nebulosas e sombrias de coisas exóticas, de criaturas híbridas coroadas com discos ladeados por chifres. A natureza é repleta de tais ilusões para impressionar aqueles com imaginação.
Naquela noite os peregrinos deixaram Ulthar e nunca mais foram vistos. E os moradores ficaram preocupados quando perceberam que em toda a aldeia não se encontrava um gato sequer. Os gatos domésticos haviam sumido de cada lar: gatos grandes e pequenos, pretos, cinzentos, listrados, amarelos e brancos. O Velho Kranon, o burgomestre, jurava que as pessoas escuras haviam levado embora os gatos como vingança pela morte do gatinho de Menes, e amaldiçoou a caravana e o menino. Porém, Nith, o magro notário, afirmava que o velho e sua esposa eram suspeitos mais prováveis, pois seu ódio por gatos era notório e cada vez mais ousado. Ainda assim, ninguém ousou reclamar com o sinistro casal, mesmo quando o pequeno Atal, o filho do estalajadeiro, jurou que havia visto no crepúsculo todos os gatos de Ulthar naquele pátio amaldiçoado sob as árvores, andando de maneira muito lenta e solene em um círculo ao redor da cabana, lado a lado em duas filas, como se realizando algum tipo de ritual de animais desconhecido. Os aldeões não sabiam o quanto acreditar em um menino tão pequeno e, embora temessem que o casal maligno houvesse enfeitiçado e atraído os gatos para a morte, preferiam repreender o velho do casebre quando o encontrassem do lado de fora do pátio sombrio e repelente.
De modo que Ulthar voltou a dormir tomada por uma raiva inútil; e quando as pessoas despertaram ao amanhecer, eis que cada gato estava de volta ao seu lar de costume! Grandes e pequenos, pretos, cinzentos, listrados, amarelos e brancos, não faltava nenhum. Muito lustrosos e gordos pareciam os gatos, a soarem com um contentamento ronronante. Os cidadãos falaram uns com os outros sobre o ocorrido e muito se espantaram. O Velho Kranon insistiu mais uma vez que foram as pessoas escuras que os haviam levado, visto que gatos não voltam vivos da cabana do velho e sua esposa. Mas todos concordavam em uma coisa: que a recusa de todos os gatos de comerem suas porções de carne ou de beberem seus pires de leite era extremamente intrigante. E por dois dias inteiros os gatos lustrosos e preguiçosos de Ulthar não tocaram em comida, apenas dormitando em frente às lareiras ou ao sol.
Passou-se uma semana inteira antes que os aldeões notassem que luz alguma aparecia ao entardecer nas janelas da cabana sob as árvores. O magro Nith observou então que ninguém havia visto o velho ou sua esposa desde a noite em que os gatos desapareceram. Dada outra semana, o burgomestre decidiu vencer seus medos e fazer uma visita à morada estranhamente silenciosa como uma questão de obrigação, embora ao fazê-lo teve o cuidado de levar consigo como testemunhas Shang, o ferreiro, e Thul, o canteiro. E quando arrombaram a frágil porta, o que encontraram foi somente isto: dois esqueletos humanos completamente limpos no chão batido e alguns besouros peculiares rastejando nos cantos escuros.
Posteriormente houve muito que se falar entre os habitantes de Ulthar. Zath, o legista, discutiu demoradamente com Nith, o magro notário; e Kranon, Shang e Thul foram assaltados de perguntas. Até mesmo o pequeno Atal, o filho do estalajadeiro, foi rigorosamente interrogado e recebeu uma guloseima como recompensa. Conversavam sobre o velho e sua esposa, sobre a caravana de peregrinos escuros, sobre o pequeno Menes e seu gatinho preto, sobre a prece de Menes e sobre o céu durante essa prece, sobre as ações dos gatos na noite em que a caravana partiu e sobre o que foi encontrado mais tarde na cabana sob as árvores escuras no pátio repulsivo.
E, por fim, os habitantes promulgaram aquela lei notável que é mencionada pelos comerciantes em Hatheg e discutida por viajantes em Nir; a lei que diz que, em Ulthar, homem algum pode matar um gato.


[Escrito em 15 de junho de 1920 e publicado originalmente na edição de novembro de 1920 do jornal amador The Tryout.]
Tradução de Gabriel Oliva Brum

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